domingo, 18 de junho de 2017

Do artesanal ao industrial, por Cezar Augusto

DO ARTESANAL AO INDUSTRIAL: DOIS MOMENTOS DA
CARPINTARIA NO BRASIL

FIGUEREDO, Cezar Augusto S. (1); CARRASCO, Edgar Vladimiro Mantilla (2)
1. Universidade Federal de Minas Gerais, Departamento de Tecnologia da Arquitetura e Urbanismo
Rua Paraíba, 697 - Funcionários - Belo Horizonte - Minas Gerais – Brasil
136.arq@gmail.com
2. Universidade Federal de Minas Gerais, Departamento de Tecnologia da Arquitetura e Urbanismo
Rua Paraíba, 697 - Funcionários - Belo Horizonte - Minas Gerais – Brasil
mantilla@dees.ufmg.br


RESUMO

A construção civil é um processo continuo de avanços tecnológicos e esses avanços impactaram
diretamente na prática da carpintaria. A introdução de novos materiais, novos tipos de madeira, novos tipos de ligação, a normalização técnica e os detalhamentos alteraram substancialmente o perfil do
mestre-carpinteiro e as técnicas de carpintaria utilizadas. Neste artigo abordaremos especificamente
o ofício da carpintaria tradicional, sua preservação, transmissão e sua práxis dentro do contexto atual de normalização técnica das estruturas de madeira e as práticas demandadas pela norma para execução de estruturas de madeira. O objetivo é pontuar as alterações tecnológicas na construção civil que impactaram na prática da carpintaria tradicional. Uma das alterações fundamentais foi a mudança do perfil do carpinteiro construtor para o de carpinteiro montador, alterando assim toda a lógica construtiva e de pensamento da carpintaria tradicional, que sob essa nova ótica perdeu suas
características principais de autonomia e de engenhosidade. A introdução da norma técnica de
estruturas de madeira e sua posterior revisão criaram critérios para o desenvolvimento o
desenvolvimento de projetos e promoveram sua industrialização e seriação.

Palavras-chave: Carpintaria; Técnicas Construtivas Tradicionais; História da carpintaria.

INTRODUÇÃO

A construção civil é um processo continuo de avanços tecnológicos e esses avanços impactaram
diretamente na práxis da carpintaria. A introdução de novos materiais, novos tipos de madeira, novos tipos de ligação, a normalização técnica e os detalhamentos alteraram substancialmente o perfil do
mestre-carpinteiro e as técnicas de carpintaria utilizadas.
Segundo VARGAS (1994), a indústria da Construção Civil no Brasil passou por pelo menos três
estágios sucessivos: o primeiro estágio é puramente técnico, com ausência de qualquer ciência
aplicada, limitando-se à adaptação de técnicas externas às condições locais. O Brasil passa por esse
estágio desde a sua descoberta até o início do século XIX, incorporando a técnica medieval e renascentista. O segundo estágio refere-se à aplicação de teorias e métodos científicos aos
problemas da técnica anteriormente estabelecida, o que ocorreu no Brasil a partir da criação das escolas militares e de engenharia, quando chegou ao Brasil a corte portuguesa. O terceiro estágio tem início quando aparecem, no começo do século XX, em São Paulo e no Rio de Janeiro, os institutos de pesquisas tecnológicas.
Neste artigo abordaremos especificamente o ofício da carpintaria tradicional, sua preservação, transmissão e sua práxis dentro do contexto atual de normalização técnica das estruturas de madeira
e as práticas demandadas pela norma para execução de estruturas de madeira. O objetivo é pontuar as alterações tecnológicas na construção civil que impactaram na prática da carpintaria tradicional.
Para isso, em lugar de fazermos uma analise histórica e linear da carpintaria, apontaremos sua
mudança a partir do seu processo produtivo, de artesanal para industrial, pautada pela criação da norma NB-11/1951 – Projeto e Dimensionamento de Estruturas de Madeira. Dessa forma os autores
GONZAGA (2006), FÍGOLE e GADELHA (2012), MARCHAND (2006), CARTER e CROMLEY (2005),
nos ajudam a entender e pontuar as questões relativas ao processo artesanal da carpintaria. Já os
autores ALBUQUERQUE (2007), LOGSDON (1997), MIOTTO (2006), MARQUES (2010) e KAPP
(2004) nos fornecem subsídios para analisar a produção industrial da carpintaria, baseadas na inserção da norma e suas novas demandas de produção.

A CARPINTARIA TRADICIONAL

A carpintaria tradicional é uma técnica que foi amplamente difundida e utilizada desde o Brasil colônia, originando um sem-número de edificações construídas a partir desse sistema construtivo. As qualidades intrínsecas da técnica saltam aos olhos ao observarmos que as estruturas produzidas mantém sua qualidade e desempenho mesmo séculos depois de terem sido construídas.
A permanência, aprendizagem, transmissão e aplicação das técnicas tradicionais de construção é um fator assegurador da conservação do patrimônio cultural construído. O domínio dos materiais e sistemas construtivos antigos garante subsídios para o restauro, manutenção de edificações antigas e permite difundir as práticas construtivas vernáculas, salvaguardando mais que simplesmente o objeto íntegro construído, mas a práxis, o arte-fazer, que envolve a produção desse objeto.
Essas técnicas tradicionais, seus processos criativos e sua práxis características recentemente tem
chamado a atenção dos órgãos e institutos de patrimônio, dando origem a diversas ações no intuito
do reconhecimento, catalogação e da preservação desse patrimônio, denominado intangível ou
imaterial. Diversas ações no sentido de ensino, preservação e transmissão dessas técnicas
tradicionais vem sendo desenvolvidas.

O Brasil possui, hoje, dezenove sítios históricos considerados Patrimônio Histórico e Cultural da
Humanidade, entre os mais de seiscentos eleitos pela UNESCO em todo o mundo. Dentre as áreas
podemos ressaltar os seguintes sítios: Centro Histórico de Goiás (GO), Diamantina (MG), Olinda
(PE), Ouro Preto (MG), Centros Históricos de São Luís (MA) e de Salvador (BA), que possuem
edificações construídas utilizando estruturas de madeira, principalmente em suas coberturas. No Brasil as coberturas em estruturas de madeira foram inseridas no período colonial, com a chegada dos primeiros exploradores. As construções nesta época utilizavam os materiais existentes na região. Parte relevante do conjunto de edificações de valor cultural que se preserva no Brasil é constituído
por construções que fazem uso de estruturas de madeira, sobretudo em suas coberturas, ressaltando
a importância da preservação da carpintaria tradicional, que tem nas sambladuras um elemento
chave de sua característica construtiva “O conhecimento técnico do corte e do entalhe que detinham os colonizadores portugueses juntou-se à sabedoria dos indígenas quanto às características das madeiras nativas, criando uma cultura bastante específica.” (Gonzaga, 2006, p.11).
A carpintaria tem no século XVII e XVIII, no Brasil, papel preponderante na construção civil, sendo técnica construtiva amplamente utilizada, sobretudo pela abundância de madeiras e por ser uma técnica relativamente fácil de ser aprendida e transmitida, dando origem a artífices da madeira, que
transmitiam conhecimento de geração para geração.
Apesar de técnica popular e de uso extensivo, há grande dificuldades em encontrar bibliografias que
apresentem técnicas construtivas de telhados no Brasil anteriores ao período Imperial. Talvez o
registro mais importante dessa técnica construtiva seja o livro de Santos (1951) em que o autor
apresenta detalhadamente com descrições e desenhos as estruturas de madeira de telhados de diversas igrejas de Ouro preto do período Colonial.
No século XIX já encontramos publicações de manuais em que se apresentam registradas as
técnicas construtivas de carpintaria tradicional empregadas na construção de telhados em Portugal e
no Brasil. Os livros do engenheiro João Emilio dos Santos Segurado apresentam o registro de
detalhes executivos de vários elementos construtivos. Um livro especial: “Trabalhos de Carpintaria Civil” apresenta detalhes de execução e elementos de madeira, sobretudo os de estruturas de telhados coloniais. Dentre as diversas informações apresentadas como dimensões e angulações do madeiramento, tipologias de tesouras, destacam-se os detalhamentos dos encaixes estruturais entre as peças de madeira dos telhados, denominadas sambladuras.
A sambladura na carpintaria é a técnica de recorte ou entalhes na madeira para junção ou encaixe de duas ou mais peças. Podem ser simples ou extremamente intrincadas e complexas. Essas
sambladuras tem em sua engenhosidade técnica para solucionar encaixes estruturais na madeira um grande valor arquitetônico e revelam o saber-fazer do mestre carpinteiro que a executou: demonstrando suas habilidades e inteligência na resolução desses nós estruturais, muitas vezes através de soluções únicas e em sua quase totalidade criadas em canteiro.

Dado esse contexto, presume-se que o ofício de mestre-carpinteiro estabeleceu-se historicamente
não somente envolvendo cortar, desdobrar e talhar a madeira para a construção, mas também
desenvolver soluções técnicas capazes estruturar e garantir a durabilidade da construção. Mais que um fazer técnico, a carpintaria tradicional envolve um fazer intelectual, um engenho na concepção de soluções apropriadas a cada situação diferente para a eficiência dos sistemas estruturais e construtivos, como observa Fígoli e Gadelha (2012) ao descrever o relato do mestre-carpinteiro José
Geraldo Rosa sobre seu ofício:
Segundo ele (José Geraldo Rosa), o resultado dos trabalhos em carpintaria não se diferencia de um profissional para outro, mas as técnicas usadas pelos carpinteiros são diferenciadas, e implicam em bons resultados ou não.
“Ninguém fica a olhar os detalhes. Depois de coberto, tudo é telhado, está tudo bonitinho. Agora, os detalhes de execução do trabalho, a segurança, a durabilidade é que vem depois. Então, frechais encaixados, tesouras encaixadas, cachorros encaixados, espigões, tudo encaixadinho na cumeeira, nos frechais, isso é que é o espírito de durabilidade do telhado. E
muitas vezes, isso não acontece, porque muitos carpinteiros chegam com uma peça na outra e bate prego. E amanhã, o telhado trabalha muito, aí começa: abre num canto um pouquinho, puxa no outro. Às vezes a carga de
um lado tá mais do que no outro, aí, aquele troço vai desequilibrando e o
telhado começa aí: selando, abrindo, empurrando parede (...)” (Fígoli e Gadelha, 2012, p.120).
Marchand (2006) reforça esse conceito de um fazer intelectual do mestre-artífice ao ressaltar no
objeto construído o valor não somente do ‘produto’ mas, sobretudo do ‘processo’ de produção desse produto, que é parte fundamental na construção do patrimônio é constituído pela expertise, pelas qualificações e conhecimento das pessoas – fruto das relações sociais e transmissão de tradições e conhecimentos. Mais que a técnica envolve o entendimento de todo o contexto produtivo do objeto.

PRODUÇÃO ARTESANAL DA CARPINTARIA

A partir do entendimento da carpintaria tradicional e das questões intrínsecas a sua prática, é importante, portanto pontuar a produção artesanal da carpintaria. Essa produção corresponde à
produção de edificações do Brasil Colônia. A partir do primeiro século XVII, tornam-se cada vez mais numerosas as construções de madeira, em pau-a-pique, inclusive casas particulares, feitas
artesanalmente, sem nenhum plano formal, às vezes pelo próprio morador ou seus vizinhos e amigos.
Quanto às edificações não militares ou religiosas no período colonial a atividade construtiva consistiu principalmente na execução de edificações residenciais, nas propriedades rurais e nas cidades, as
quais se caracterizavam pela uniformidade de plantas e técnicas construtivas.
Castritota (2012) ressalta a mudança no entendimento do patrimônio não como um produto, mas como um processo, uma práxis que agrega os objetos, artefatos e espaços culturais que lhes são inerentes.
“a importância que têm os processos de criação e manutenção do conhecimento sobre o seu produto (a festa, a dança, a peça de cerâmica,
4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação
Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro por exemplo). Ou seja, procuram enfatizar que interessa mais como patrimônio o conhecimento, o processo de criação e o modelo, do que o
resultado, embora este seja sua expressão indubitavelmente material”.
(MINC/IPHAN, 2003, p. 17).
Nesse conceito ampliado que se situa a carpintaria artesanal, que carrega consigo as práticas, o
saber-fazer de técnicas construtivas tradicionais, importante patrimônio imaterial a ser preservado para assegurar a conservação do patrimônio cultural construído. O domínio dos materiais e sistemas construtivos antigos garante subsídios para o restauro, manutenção de edificações antigas
e permitem difundir as práticas construtivas vernáculas, salvaguardando mais que simplesmente o objeto construído, mas a práxis, o arte-fazer, que envolve a produção desse objeto.
Mais que um objeto o edifício é produto de um processo, processo no sentido de um conhecimento
processual e de transmissão desse conhecimento. Marchand (2006) demonstra o papel dos
construtores tradicionais na produção do ambiente construído, na significação desse espaço, nas
relações sociais e no sentido de segurança que eles dão ao espaço. Mais que agentes da técnica
esses construtores são agentes sociais do espaço.
Essas práticas e processos não são tangíveis, mensuráveis, mas são uma ‘experiência sensível’,
repassáveis, constituindo um processo dinâmico de regeneração e reprodução do processo, gerando
uma tradição carregada de valores simbólicos e que sobrevive através do tempo.
Um fator relevante a ser considerado na carpintaria artesanal é a inexistência do projeto ou de um
profissional do projeto na concepção e execução das obras durante esses períodos. Isso eleva o trabalho do carpinteiro para além do trabalho manual para um trabalho intelectual, ficando delegado ao mestre-carpinteiro o papel de conceber e executar as sambladuras, baseado no empirismo, na expertise e na experimentação. O mestre-carpinteiro propunha soluções de encaixes diversos e criativos para solucionar as demandas de estruturação das coberturas. Essas soluções encontram-se
presente até hoje, preservadas em coberturas dos séculos XVII e XVIII, conferindo a elas qualidades técnicas executivas e dota de um valor cultural preponderante a pratica técnico-criativa desses
artífices e mestres da carpintaria, constituindo sua práxis como um arte-fazer, uma pratica vernácula
dotada de uma qualidade artística, mais que um saber-fazer é um exercício intelectual, dotado de
valor artístico do ofício.
Nesse aspecto Carter e Cromley (2005) contribuem ao entendimento da importância do vernáculo o definindo como o estudo das ações humanas e comportamentos que se manifestam na arquitetura
comum, salientando que esse entendimento permite conhecer e explicar as ideias valores e crenças, a cultura que permeia esse objeto.
A carpintaria artesanal é historicamente estabelecida, portanto, como uma práxis autônoma, no sentido de autonomia abordada por Kant (1922) onde o mestre-carpinteiro é dotado tanto do direito
quanto da capacidade de dar a si mesmo a própria norma (Kapp, 2004, p.97), uma vez que sua prática é fundamentada nos seus processos pessoais de decisão construtiva, onde sua experiência,
conhecimentos e engenhosidade são seus esteios na execução das obras, em um contexto onde as
formalidades projetuais, como o desenho, o projetista não existe, cabendo ao próprio artífice o papel de executor e a concepção intelectual da estrutura.
Preservar o ofício da carpintaria tradicional, em sua essência histórica, não é preservar somente um fazer técnico, o conhecimento da madeira, dos encaixes e de sua trabalhabilidade, mas preservar o
fazer intelectual associado a essa prática, preservar a autonomia historicamente ali presente. A
transmissão e aprendizagem desse conhecimento construtivo tem um papel fundamental e
incalculável para se pensar nas questões que envolvem a conservação e preservação do ofício da carpintaria tradicional.

A PRODUÇÃO INDUSTRIAL DA CARPINTARIA

No oposto da autonomia encontra-se a heteronomia, que é um conceito criado por Kant para
denominar a sujeição do individuo à vontade de terceiros ou de uma coletividade. Opõe-se assim ao
conceito de autonomia. Dentro do contexto de produção de objetos que está sendo abordado, pode-
se associar a heteronomia a existência de uma ferramenta externa ao mestre-canteiro que regule a ação deste, dissociando atividade intelectual e fazer manual ou nas palavras do Sr. José Geraldo “a mão faz aquilo que a cabeça manda” (Fígoli e Gadelha, 2012 p.122).
Conhecimentos com base científica começaram a ser introduzidos na construção de edificações nas
décadas de 1920 e 1930, passando a serem incorporados tanto no projeto como na produção de
materiais e componentes. O suporte tecnológico para este estágio de desenvolvimento foi prestado pelo “Laboratório de Ensaios de Materiais (LEM), ligado à Escola Politécnica de São Paulo, pelo Instituto Nacional de Tecnologia (INT), no Rio de Janeiro e também pela Associação Brasileira deNormas Técnicas (ABNT).
A especialização das profissões e o estabelecimento de hierarquias e qualificações técnicas criaram
profissionais habilitados a projetarem e conduzirem a execução dessas estruturas de madeira outrora idealizadas e resolvidas em canteiro. Arquitetos e engenheiro apoderaram-se do fazer intelectual referente às coberturas e estruturas de madeira. Como parte do processo de regulamentação e padronização de requisitos de desempenho foram estabelecidas normas técnicas.
Uma norma técnica serve para definir regras mínimas de segurança e qualidade para se produzir algo
ou realizar um determinado serviço. Uma norma é elaborada por profissionais que discutem sobre todos os itens que a compõe, realizando ensaios experimentações e modelos para atestar a eficiência
dos seus requisitos. A primeira norma técnica referente a estruturas de madeira data de 1982, denominada NB-11. Em 1997 ela foi reformulada, alterando todo seu conteúdo e a metodologia de dimensionamento e detalhamento das estruturas de madeiras, gerando a NBR 7190/97. Logsdon (1997) sinaliza as melhorias e evolução apresentada pela norma enfatizando os ganhos obtidos no novo sistema de dimensionamento das estruturas de madeira.
A partir da NB-11 ocorre a normalização dos projetos de estruturas de madeira que prescreve critérios para o dimensionamento de sambladuras. Com a adoção desses critérios configuram-se dois
campos distintos que determinam práxis distintas: uma práxis que denominaremos autônoma, que é
baseada no saber-fazer e que carrega na sua gênese as questões abordadas da carpintaria
tradicional, e outra práxis, que chamaremos de normalizada, que é baseada na execução dos
projetos realizados sob a luz da norma técnica e que apesar de carregar ainda o fazer técnico não
permite a expressão criativa do artífice que a executa.
Por essa época houve também a introdução de novos equipamentos e ferramentas que visavam o aumento da produtividade do setor. A incorporação da ciência ao processo de produção deslocou o
“domínio do saber”, que era do trabalhador, para a engenharia e arquitetura. No entanto, esse
deslocamento não atingiu o modo de executar as atividades no canteiro de obras, que continuou sob o controle dos operários.
A prática normalizada da carpintaria no decorrer de sua evolução passa a incorporar novos elementos de ligação entre as peças, novos materiais e novas madeiras, advindos da própria evolução e industrialização da construção civil. Ligações por entalhe passam a serem substituídas por ligações
metálicas, pinos, colas e outras tecnologias, a madeira antes coletada e desdobrada, passa a ser
fornecida aparelhada, oriunda de espécies cultivadas em manejo controlado. O desenho, projeto
detalhado, passa a protagonizar o canteiro e os nós estruturais e ligações deixam de ser pensados e
resolvidos na obra e passam a ser resolvido e solucionado em etapas anteriores, através de
desenhos técnicos. Não mais a experimentação e o engenho estão presente nas soluções de
ligações, mas o atendimento a metodologias de projeto e dimensionamento, o que de certa forma reduz a variabilidade de soluções, padronizando e seriando as possibilidades de resolução desses nós. Mesmo quando inventivas essas ligações são projetadas fora do canteiro, a partir de conhecimentos que não são exatamente o ‘saber-fazer’ do mestre-carpinteiro.
É possível subsumir uma nova perspectiva construtiva advinda desse contexto: a seriação da
produção em canteiro, de tal forma que o carpinteiro deixou de ser um executor e passou a ser um
montador. A introdução do projeto e a lógica industrial substitui o carpinteiro que extraia a madeira, a beneficiava e construía, pelo carpinteiro que interpreta a linguagem do projeto, dialoga com
fornecedores e monta a cobertura a partir dos materiais recebidos já pré-dimensionados e
beneficiados.
A formação desse novo perfil de mestre-carpinteiro impacta diretamente nas questões que
concernem à preservação e continuidade do arte-fazer tradicional. Fígoli e Gadelha (2012) sinalizam que o ofício da carpintaria é transmitido ou hereditariamente ou através do ensino de aprendizes,
através do acompanhamento e auxílio do mestre-artificie no seu trabalho. Dessa forma novos
carpinteiros são formados já inseridos e treinados dentro dessa práxis normalizada, onde a
inventividade e autonomia do artificie dão lugar ao tecnicismo e montagem e soluções pré-
cocarpintaria.
Outro ponto importante a levantar é que apesar das práxis distintas (autônoma e normalizada), é
importante perceber que seus atores, nos dias de hoje, são os mesmos: os mestres-carpinteiros que hora trabalham no canteiro da indústria da construção civil, são os que em outros momentos
produzem a práxis autônoma, dissociada de projeto e normas. A prática autônoma da carpintaria hoje em dia acontece geralmente em processos de autoconstrução ou autogestão, onde a figura do
arquiteto ou engenheiro não existe e dá lugar ao trabalho livre de construtores, carpinteiros e
moradores, numa dinâmica colaborativa e saberes livres que se apropriam das condicionantes
existentes, como materiais disponíveis, para produção das construções. A autora Marques (2010) aponta que na autoconstrução as restrições econômicas conduzem os construtores a uma regra do
jogo que é sempre no sentido de se fazer o que puder com aquilo que se tem nas mãos, ou seja, um
conjunto de ferramentas heterogêneo e finito, a partir do que Levi Strauss (1989) nomeou
‘”pensamento selvagem” onde os processos criativos e tecnológicos são compelidos pelos materiais
disponíveis.
É relevante observar que como Carter e Cromley (2005) apontam, esses artificies incorporam em
suas práxis autônomas as tecnologias industrializadas utilizadas nos canteiros de obras em que trabalham, mas de uma forma diferente, utilizando esses materiais como matéria para soluções construtivas associadas aos materiais disponíveis. Dessa forma a carpintaria tradicional aos poucos foi incorporando novas ligações, madeiras e formas de construir. O resultado é que ainda que a carpintaria como ofício, tenha resistido ao tempo e chegado aos dias de hoje com diversos profissionais atuando, as técnicas de sambladura foram sendo substituídas por outros tipos de ligações e novas formas de produção das estruturas de madeira.
Tinoco (2013) alerta que apesar de milenares e sua larga presença nas edificações antigas poucos
profissionais hoje dominam a técnica de sambladura. Isso justifica esforços como o empreendido pelo Iphan no intuito de registrar os mestres e as técnicas tradicionais de carpintaria na publicação Ofícios
(2012), e as recorrentes oficinas de ensino de carpintaria. Diversas ações de educação patrimonial,
no sentido de ensino de técnicas construtivas tradicionais, têm sido empreendidas no intuito de
salvaguardar esse saber fazer tradicional, uma vez que a carpintaria apesar de ser técnica presente e difundida nos dias atuais teve suas características alteradas e o que temos hoje é um carpinteiro com
conhecimentos dicotômicos em relação aos carpinteiros tradicionais. Carecem, portanto do ensino e da aprendizagem das técnicas tradicionais de carpintarias que inclui, sobretudo, as sambladuras.

CONCLUSÃO

Ao analisar, portanto as questões que perpassam a o arte-fazer autônomo da carpintaria tradicional, encontramos diversos entraves para a manutenção e transmissão desse ofício. A mudança do
paradigma construtivo, a inserção do desenho no canteiro a utilização de novos materiais e novos encaixes contribuíram para alterações profundas na práxis da carpintaria e no perfil do mestre-
carpinteiro. Uma das alterações fundamentais foi à mudança do perfil do carpinteiro construtor para o de carpinteiro montador, alterando assim toda a lógica construtiva e de pensamento da carpintaria tradicional, que sob essa nova ótica perdeu suas características principais de autonomia e de
engenhosidade.
A introdução da norma técnica de estruturas de madeira e sua posterior revisão criaram critérios
estanques para o desenvolvimento o desenvolvimento de projetos. Esses critérios deslocaram o
‘saber-fazer’ do mestre carpinteiro e suas experimentações em canteiro para o território hermético do projeto e dos roteiros de dimensionamento, que produzem via-de-regra soluções estandardizadas para estruturas e ligações de madeira. Aliado a isso de uma forma geral as ligações produzidas autonomamente pelos mestres carpinteiros apresentam inúmeras inadequações em relação à norma, porém a falta de adequação, não levou as estruturas antigas ao colapso, podendo-se concluir também que, a norma NBR 7190/97 pode ser considerada uma norma conservadora, em relação aos
coeficientes de segurança, como aponta Albuquerque (1997), que estudou diversas ligações
artesanais a partir dos parâmetros introduzidos pela norma técnica.
Essas relações conflitantes entre prática tradicional da carpintaria e a normalização demonstram que
é preciso aliar esse arte-fazer próprio do ofício a norma técnica e aos projetos desenvolvidos sob
seus critérios. A preservação desse ofício perpassa pelo entendimento da importância da prática de
carpintaria historicamente estabelecida: da figura do carpinteiro dotado da capacidade de decisões técnicas e soluções construtivas das sambladuras, um arte-fazer do próprio mestre-carpinteiro e, sobretudo a adequação das práticas demandadas pela norma que se mostra contraproducente à
práxis tradicional de carpintaria.


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